segunda-feira, 10 de abril de 2017

Mário de Andrade, o Piauí de Laura Moura e outras paixões

O poeta e crítico Francisco Miguel de Moura, no caderno Torquato (dia 7 de setembro de 1997), do jornal O Dia (Teresina-PI), escreveu interessante artigo dando a sua "certeza de que pelo menos dois poetas famosos lembraram do Piauí em seus poemas". 
Francisco Miguel nos fala do Carlos Drummond de Andrade, com os poemas (O Padre, A Moça (Lição de Coisas - I ATO, segunda estrofe)

“(...) Lá vai o padre atravessa o Piauí, lá vai o padre
 bispos correm atrás, lá vai o padre
 lá vai o padre, a maldição monta cavalos telegráficos,
lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre,
o diabo em forma de gente, sagrado.(...)”
e Cemitérios (Fazendeiro do Ar - Item II - Campo-Maior)

“No cemitério de Batalhão os mortos do Jenipapo
Não sofrem chuva nem sol; o telheiro os protege
Asa móvel na ruína campeira.”

O poeta Francisco Miguel de Moura informa que não sabia o título do segundo poema e nem o havia decorado. Também não diz o título do primeiro poema. Neste, cita o nome do livro errado - Lição das Coisas, quando é Lição de Coisas. Naquele, nada do nome do livro. No livro Reunião, do poeta Carlos Drummond de Andrade, quarta edição, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1973, conferi O Padre, A Moça, página 250, e Cemitérios, página 207.
Ao transcreverem parte do poema Cemitérios (Item II - Campo-Maior), do Carlos Drummond de Andrade, no Monumento à Batalha do Jenipapo, cometeram três erros. Primeiro: erraram o nome do poeta. Segundo, escreveram Asa com Z - AZA. Terceiro, não obedeceram à disposição visual dos versos no poema.
Mas, deixando isso um pouco de lado, tratemos do outro famoso poeta citado pelo Francisco Miguel de Moura, que nada mais é do que o Mário de Andrade, com o poema Eu Sou Trezentos... (7/VI - 1929 - Remate de Males, São Paulo, 1930), aqui reproduzido para melhor leitura de um dos trabalhos mais citados do autor de Macunaíma.

Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh, espelhos, ôh.' Pirineus.' ôh caiçaras!,
Se um Deus morrer irei no Piauí buscar outro! *

Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis nas camarinhas seus próprios beijos.

Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

Sem qualquer pretensão de partir para uma análise da obra em questão (ou outra que se apresente), apenas chamo a atenção para este verso

Se um Deus morrer irei no Piauí buscar outro!

inspirado pela quadrinha popular:

o meu boi morreu
que será de mim
manda buscar outro, ó maninha, lá no Piauí.

Mário, pesquisador contumaz, conhecia, como ninguém, as coisas da nossa cultura. Dai este belo exemplo de aproveitamento dessa que é uma das principais manifestações da nossa arte popular.

NAS TERRAS DO MACUNAÍMA

O Piauí, por duas vezes, será citado em Macunaíma, o mais conhecido e comentado livro de Mário de Andrade.
A primeira, no Capítulo XI. A Velha Ceiuci (pág 107):

(...) Então a velha apeou do tapir e montou num cavalo gázeo-sarara’que nunca prestou nem prestará e seguiu. Quando ela virou a serra do Paranacoara os padres tiraram o herói do pote, deram pra ele um cavalo melado-caxito que tanto é bom como é bonito e mandaram ele embora. Macunaíma agradeceu e galopou. Logo adiante encontrou uma cerca de arame porém era cavaleiro: deu um sacalão, esbarrou o pongo e ajuntado as mãos do animal caído com um jeito forte fez o cavalo girar e passar por debaixo do arame. Então o herói pulou a cerca e amontou de novo. Galopeou galopeou galopeou. Passando no Ceará decifrou os letreiros indígenas do Aratanha; no Rio Grande do Norte costeando o serrote do Cabelo-não-tem decifrou outro. Na Paraíba, indo de Manguape pra bacamarte passou na Pedra-Lavrada com tanta inscrição que dava um romance. Não leu por causa da pressa e nem a da Barra do Poti no Piauí, nem a de Pajeú em Pernambuco, nem a dos Apertados do Inhamum: “Baúa! Baúa!” Era a velha Ceiuci chegando. Macunaíma pernas pra que vos quero pelo eucaliptal. Mas o passarinho sempre mais perto e Macunaíma isso vinha que vinha acochado pela velha. Afinal topou com a biboca dum surucucu que tinha parte com o canhoto. (...).

A outra passagem está no Capítulo XVI. Uraricoera (Págs. 154):

(...) Os trabalhadores estumaram a cachorrada no herói. Isso mesmo que ele queria porque teve medo e chispou bem. Na frente abria a estrada das boaidas. Macunaíma isso vinha que vinha acochado pela sombra, nem turtuveou: meteu pelo estradão. Mais adiante estava dormindo um boi malabar chamado Espácio que viera do Piauí. O herói deu um trompaço nele de tanta fúria. Isso o boi saiu numa galopada louca de susto e lá goi cego manadeiro abaixo. Então Macunaíma quebrou por uma picada sem jeito e se amoitou por debaixo dum mucumuco. A sombra escutava a bulha do marruá galopeando e imaginou que era Macunaíma, foi atrás. Alcançou o boi e pra não perder a pernada fez poleiro no costado dele. E cantava satisfeita:

“Meu boi bonito,
Foi alegria,
Dá uma deus
Pra toda a família!

Ôh... êh bumba,
Folga meu boi!
Ôh... êh bumba,
Folga meu boi!” (...)

UMA HISTÓRIA APÓS A OUTRA

Francisco Miguel de Moura contou a historinha do famoso papo entre o saudoso mestre A. Tito Filho e o poeta Carlos Drummond de Andrade, quando este recebendo, por intermédio do ex-presidente da nossa Academia Piauiense de Letras, convite do governador Alberto Silva para fazer uma conferência na reinauguração do Theatro 4 de Setembro, declinou à sua maneira:
- “Nunca fiz uma conferência em toda a minha vida, não iria começar pelo Piauí”.
 - “Poeta, seria uma forma de promovê-lo. É que lá ninguém o conhece”.
Drummond não perdeu a pose:
- “Pois diga para o seu governador que eu vou ficar desconhecido no Piauí”.
CDA não veio ao Piauí mas trocou 4 ou 5 cartas com o nosso Francisco Miguel de Moura. E todos vivemos felizes para sempre.

NA PANCADA DO GANZÁ

A historinha que conto, aqui, diz respeito a uma paixão que Mário de Andrade teve por uma moça do Piauí, que, por pouco, não o faz vir morar em nossas terras. 
Eis  o começo da confissão de Mário de Andrade, extraída do livro Na Pancada do Ganzá:

- “Eu me dirigia diretamente por Recife, onde esperava passar uns dias de descanso. A viagem no casquinho frágil do "Manaus" com apenas duas mil toneladas, lerdo e movediço, foi de deliciosos interesses. Os passageiros poucos se deixavam olhar, enjoados nos camarotes. Mas havia, ponhamos, Laura Moura, que não enjoava, e por ela me apaixonei. Era uma moça do Piauí, com filhotinho a bordo e coronel à espera lá em casa. No princípio ela me recebeu com duas pedras na mão, só porque delicadamente lhe perguntei se o povo do Piauí gostava muito de cantar”.
- “Então o senhor pensa que o Piauí é a terra do 'Meu boi morreu”? ela me cortou muito irritada. Popularesca e pouco instruída, ela era de-certo como todas essas Polícias do Nordeste que fazem o impossível pros cordões de Bumbas, Caboclinhos e Fadangos não saiam nas ruas das cidades, pra não estragar a civilização. Me afastei de Laura Moura por metade de um dia, cheio de raiva. Mas não tive raiva pra mais, porque ela era mesmo atraente, gordinha, muito mulher séria pra se ver assim de longe. Se estabeleceu logo uma intimidade mais graciosa, em que pudemos os dois viver mas muito bem”.

O TURISTA APRENDIZ

Muito reservado no que diz respeito à sua vida sentimental, este assunto sempre foi tabu quando vivo; e morto, os amigos tratam de respeitá-lo sempre que podem. Mas, de quando em vez, algumas revelações aparecem em prosa ou em versos, como pretendemos mostrar neste breve trabalho que estamos a fazer.
No livro O Turista Aprendiz, Mário de Andrade se abre mais sobre Laura Moura. Leiamos:

Página 214.

Atlântico, 8 de dezembro, 13 horas -
... Dos companheiros não tiro nada. Nem mesmo da senhora piauiense, a segunda das duas apontadas  outro dia. Estava cantalorando ontem de noite, aproveitei o assunto pra entabular conversação com ela hoje de manhã... Laura Moura me recebeu com duas pedras na mão, se então eu imaginava que no Piauí nem tinha canções populares, que em toda parte do mundo morre boi e não é só no Piauí que o meu boi morreu... Meu Deus, eu não caçoara nem perguntara nada disso não! Só perguntara se ela podia cantarolar alguma canção típica da terra dela... Sebo! Me calei. Felizmente que chegou o filhinho dela, um piá saci temível, que me chama de retratista por causa da codaque.
- Como é seu nome, heim?
- José Camargo Machado.
- Como é o nome de sua mãe?
- Laura Moura.
- Ôh que nome bonito... e o de seu pai?
- Coronel Antônio Camargo Machado.
- Fique quieto, José!
O filho de Laura Moura jamais não saberá porque estava quieto no único momento de quietude que tivera a bordo...

Página 219.

Atlântico, 10 de dezembro, 4 horas -
Hoje com alguma probabilidade chegaremos a Recife e o mar se acaba. Isso me enquiliza bem porque estou principiando a gostar freqüentemente de Laura Moura. Ela afinal resolveu ser um bocado mais amável comigo e mesmo na janta de anteontem conversamos com fartura e se deu entre nós dois a semelhança de um prazer. Semelhança apenas porque depois do desentendimento eu inda muito paulista e ela pra se justificar da aspereza passada botara na fala a prudência das insensíveis. A conversação me lembro que ocorreu principalmente sobre bananas. Afinal a amabilidade fez o resto e já no fim da comida tomei a liberdade de dizer bem nos olhos de Laura Moura o desejo sincero de ir comer bananas em Teresina. Ela ficou bem quietinha e não nos arrependemos.
Laura Moura afinal é uma dona regularmente vulgar e sou obrigado a reconhecer que se de primeiro a distingui dentro das cunhãs de bordo foi por uma simples questão topográfica. Ela senta ao meu lado na mesa e estou com vontade de falar que senta a meus pés  tanto a carinho. Agora ela é mirim junto ao meu corpo grande. E além de sentar a meus pés, os vizinhos próximos da mesa tiveram a discrição de se conservarem enjoados pra nunca mais. Não vêm à mesa, que nem ela nos primeiros dias, e Laura Moura mais eu vogamos sozinhos numa jangada de soladamente insubmersível pelos mares.
Porém agora o mar se acaba, Laura Moura vai-se embora, eu sofro. Nada mais razoável que esta precisão de esvaziar o desejo nalgum verso... Porque Laura Moura deixou de ser vulgar, é rápida, é admiravelmente central - coisa rara nestes tempos de ambição e ganância.  E no rostinho piauiense as linhas todas convergem pra boca nova, tão vertiginosamente nova que é justo a gente se enganar tendo a impressão de que ensina pra ela... De novo a abertura do beijo.

Laura Moura...

Quando as casas baixarem de preço
Lá na cidade, Laura Moura,
Uma delas será sua sem favor.
Será um bairro bem central
Pra que o nosso mistério engane mais.

Quando as casas baixarem de preço
Você há-de ter a vossa, Laura Moura,
Lá na Cidade em que trabalho...
Há-de ser bom, pousando o rosto em vosso colo,
Prenda minha,
Me entediar como um dono,
Mal escutando as máguas de você.

Laura Moura viverá bem sossegada,
Me Servindo,
Toda Puxada pelo Piauí.
Num Longing quase bom,
Comendo alimentos comprados
Laura Moura falará de Teresina
E das Boiadas dos boiadeiros
e da polvadeira seca do Piauí.
Quando as casas baixarem de preços,
Laura Moura, prenda minha,
Uma delas será sua sem favor.
Lá fora a bulha vasta da cidade
Disfarçará nosso prazer,
E a gente numa rede maranhense
Ao som dum gramofone blue,
Balancearemos no calor da noite
Sonhando com o sertão...

PAPA DO MODERNISMO

Rubens Borba de Moraes, em Lembrança de Mário de Andrade, 7 Cartas, São Paulo, 1979, dá outras dicas amorosas do Papa do Modernismo:
... “Uma das características de sua personalidade era a reserva sobre a sua vida sentimental. Tinha pudor de sua vida íntima. Rapaz, na idade onde não se tem a menor discrição sobre aventuras femininas, nunca ouvi falar de conquistas ou proezas amorosas. Entretanto, nosso grupo vivia na maior intimidade e sabíamos tudo da vida de todos. Era tão discreto nesse particular que inventamos que deveria ter lá pelas bandas da Barra Funda ‘uma morena de jeito, teúda e manteúda’. Descobrimos, com curiosidade de meninos, que ele frequentava um rendez-vous discreto.
Perto da pensão onde morei uns tempos, na rua Jaguaribe, vivia uma mulatinha linda. Todos os rapazes a namoravam em vão. Qual não foi minha surpresa quando, uma noite, voltando para casa, vi Mário passeando de braços, muito apertadinho com a linda criatura. Casos como esse devem ter lhe acontecido com frequência. Em muito de seus contos, em certos poemas, vejo reflexos desses amores populares, pelos quais teve uma predileção em certa época. Custaram-lhe caro com tratamento e médicos.
Na rua de minha pensão morava uma jovem alemã, muito bonita que ensinava línguas. Tinha sido governanta de dois meninos em casa da família Assumpção. Nesse tempo Mário estudava alemão e andava com uma gramática na mão para aproveitar o tempo que passava em bonde, da Barra Funda à avenida São João, onde ficava o Conservatório. Uma noite, em horas que não eram absolutamente de aula, vi Mário entrar em casa da professora. Foi dessa maneira agradável e eficiente que aprendeu alemão.
Quando publicou Amar, Verbo Intransitível (que devia chamar Fraulein), notei o partido que havia tirado dessa aventura. Anos mais tarde tomei algumas aulas de inglês com essa professora. Falava-me de Mário com admiração entusiástica e saudosa.”
Telê Porto Ancona Lopez, em Uma Difícil Conjugação, prefácio ao livro Amar, Verbo Intransitivo - Idílio, de Mário de Andrade, informa que ele “estudou alemão, muito provavelmente, com duas professoras: Else Schöler Eggebert e Käthe Blosen esta, Fräulein, jovem, loura, ensinando-o na época de redação de Idílio.”
Sobre Käthe Blosen falou a miga Lotte Stevers, em 1951:
“Quando, em março de 1923, conheci Mário de Andrade, ele era para mim apenas um aluno de minha colega Kaethe, com quem eu havia alugado uma casinha, onde dávamos parte de nossas aulas e onde reuníamos nosso grupo de amigos, constituído, por falta de nossos conhecimento da língua portuguesa, na maioria de alemães recém-chegados da Europa.
Kaethe já me havia falado muito nesse seu aluno, interessante, bondoso e delicadíssimo, embora de uma feiura impressionante, que era poeta moderno e a presenteara  com um livro de sua autoria: Paulicéia Desvairada. Em sua opinião ele tinha uma coleção de quadros muito esquisita e estava loucamente apaixonado por ela.
Encontrávamos Mário de vez em quando em concertos, sempre amável, sempre disposto a ajudar”.
No livro Losango Cáqui ou Afetos Militares de Mistura com os Porquês de eu Saber Alemão aparece a história dessa jovem “de olhos matinais sem nuvens” e de “cabelos fogaréu” por quem - revela o autor - meu coração estala”.

SABE RIR, SABE GOZAR

Rubens Borba de Moraes revela ainda que Mário de Andrade “Apaixonava-se platonicamente com a maior facilidade. Muito de seu versos de amor são frutos dessas paixões sem maiores consequências. Eram amores de poeta, paixões líricas e puras como a de Petrarca. Tarsila do Amaral, antes de casar-se com Oswald de Andrade, inspirou-lhe muitos poemas. Dona Maria Carolina, filha de D. Olívia Penteado, inspirou-lhe outras série de poemas. Quase todos os versos publicados com o título de Tempo de Maria, no volume Poesias, provém dessa amor platônico.
Uma noite, em casa de Tarsila, D. Olívia pediu-lhe que dissesse um de seus poemas. Mário recitou:

Passa pura nesse mundo,
Sendo chique e sendo rica,
Tem marido, quatro filhos,
Sabe rir, sabe gozar,
O nome dela é Maria.

À medida que recitava, íamos ficando frios. Foi um alívio quando acabou. Não era para menos, pois “o nome” dela era Maria mesmo, e estava presente com o Marido! Tanta simplicidade deixou-nos perplexos. Porém “Maria” e o marido - este fora poeta - tinham superioridade e inteligência bastante para compreender e fingir que nada tinham percebido”.

UMA PAIXÃO DO PERU 

Quando em Iquitos, no Peru (única vez que Mário botou os pés fora do Brasil), em excursão com dona Olívia Guedes Penteado e sua camareira, a embaixadora Margarida Nogueira e Dulce Amaral, filha da pintora Tarsila do Amaral, o nosso dom Juan apaixonou-se perdidamente pela peruana Isabel, de apelido Chabuca. - “Foi seu amor passageiro, inclusive nas danças de todas as noites”, dedura a embaixadora Margarida Nogueira.

GIRASSOL DA MADRUGADA

Em Girassol da Madrugada, encontraremos outras inspirações oriundas destas suas fugas psicológicas.

I

De uma cantante alegria onde riem-se as alvas uiaras
Te olho como se deve olhar, contemplação,
E a lâmina que a luz tauxia de indolências
É toda um esplendor de ti, riso escolhido no céu.

Assim. Que jamais um pudor te humanize. É feliz
Deixar que o meu olhar te conceda o que é teu,
Carne que é flor de girassol! sombra de anil!
Eu encontro em mim mesmo uma espéciel de abril
Em que se espalha o teu sinal, suave, perpetuamente.

II

Dia aos menos que você quer mais desses gestos traiçoeiros
Em que o amor se compõe feito uma luta;
Isso trará mais paz, porquanto o caminho foi longo,
Abrindo o nosso passo através dos espelhos maduros.

Você não diz, porém, o vosso corpo está leindo no ar,
Você apenas esconde os olhos no meu braço e encontra a paz na escuridão.
A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados,
Enquanto o nosso paz guarda, soleníssimo,
Radiando luz, nesse esplendor dos que não sabem mais pra onde ir.

III

Si o teu perfil é puríssimo, si os teus lábios
São crianças que se esvaecem no leite,
Si é pueril o teu olhar que não reflete por detrás,
Si te inclinas e a sombra caminha na direção do futuro :

Eu sei que tu sabes o que eu nem sei si tu sabes,
Em ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos,
És grande por demais para que sejas só felicidade!
És tudo o que eu aceito que me sejas
Só pra que o sono passe, e em acordares
Com a aurora incalculavelmente mansa do sorriso.

IV

Não abandonarei jamais de-noite as tuas carícias,
De-dia não seremos nada e a ambições convulsivas
Nos turbilhonarão com as malícias da poeira
Em que o sol chapeará torvelins uniformes.
E voltarei sempre de-noite ás tuas carícias,
E serão búzios e bumbas e tripúdios invisíveis
Porque a Divindade muito naturalmente virá.
Agressiva Ela virá sentar em nosso teto,
E seus monstruosos pés pesarão sobre nossas cabeças,
De-noite, sobre nossas cabeças inutilizadas pelo amor.

V

Teu dedo curioso me segue lento no rosto
Os sulcos, as sombras machucadas por onde a vida passou.
Que silêncio, prenda minha... Que desvio triunfal da verdade,
Que círculos vagarosos na lagoa em que uma asa gratuita roçou...

Tive quatro amores eternos...
O primeiro era uma donzela,
O segundo... eclipse, boi que fala, cataclisma,
O terceiro era a rica senhora,
O quarto és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados.

VI

Os trens-de-ferro estão longe, as florestas e as bonitas cidades,
não há senão Narciso entre nós dois, lagoa,
Já se perdeu saciado o desperdício das uiaras, 
Há só meu êxtase pousando devagar sobre você.

Ôh que pureza sem impaciência nos calma
Numa fragrância imaterial, enquanto os dois corpos se agradam
Impossíveis que nem a morte e os bons princípios.
Que silêncio caiu sobre a vossa paisagem de excesso dourado!
Nem beijo, nem brisa... Só, no antro da noite, a insônia apaixonada
Em que a paz interior brinca de ser tristeza.

VII

A noite se esvai lá fora serena sobre os telhados
Num vago rumor confuso de mar e asas espalmadas,
Eu, debruçado sobre vossa perfeição, num cessar ardentíssimo,
Agora pouso, agora vou beber vosso olhar estagnado, ôh minha lagoa!

Eis que ciumenta noção de tempo, tropeçando em maracá,
Assusta guarás, colhereiras e briga com os arlequins,
Vem chegando a manhã. Porém mais compacta que a morte,
Para nós é a sonolenta noite que desce detrás das carícias esparsas.

Flor! Flor!...
Graça dourada!...
  Flor...

Rubens Borbas de Moraes traça um perfil do Mário, que me lembra Caetano Veloso na sua canção Sampa

É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes

Eis o perfil:

- “Uma noite na casa de D. Olívia, indo lavar as mãos, aproveitou para esfregar no nariz um papelzinho. Acabada a operação em frente ao espelho, exclamou:
- Meu Deus, como sou feio!
De fato era feio, mas, como dizem os caboclos, de uma feiúra simpática!
Não reparávamos nessa feiúra. Só quando alguém estranho ao grupo a mencionava é que atentávamos para aquele queixo forte e prognata, mundo de dentes grandes. Acabou-os substituindo-os por uma linda dentadura. Inventamos que ela custara tão caro que, para pagá-la tinha hipotecado a casa e, para fazer funcionar um aparelho tão grande, usava um motorzinho elétrico disfarçado no bolso. Mário ria-se. Ninguém se divertia mais que ele com essas brincadeiras.
Tinha as mãos grandes de pianista e peludas. Os traços bem marcados. Os cabelos pretos perdeu-os muito cedo, ficou com uma vasta careca.
Era o queixo que o enfeiava. Os olhos ainda que muito pequenos e míopes pareciam vivíssimos. A fisionomia era tão expressiva que nela se liam todas as suas emoções. Os lábios estavam quase sempre abertos. A voz era extremamente agradável.
Mário cantava bem, com voz agradável e sem pretensão.
Vejo-o ao piano em casa de D. Olívia, tocando e cantando. Um dia apareceu entusiasmado. Tinha composto a leta e a música de uma modinha. Sentou-se ao piano e balançando o corpo, a cabeça para trás, os olhos semi cerrados, embalado pela música, cantou langorosamente:
Minha viola gemeu,
Meu Coração estremeceu,
Minha viola quebrou,
Teu coração me deixou.

Foi um sucesso! Villa Lobos, D. Olívia, Tarsila, todos os presentes acharam a canção esplêndida. Elsie Houston e Germaninha Bittencourt passaram logo a cantá-la em seus concertos. Mário porém proibia que se mencionasse seu nome no programa. Dizia que sua ambição era que a modinha passasse para o folclore anônimo como toda toada popular paulista. E passou. Tenho ouvido cantar a viola quebrada sem a menção do nome do autor. Minha sobrinha costumava cantá-la ao violão e ficou muito surpresa quando lhe disse que era do Mário de Andrade”.
Mário tinha tudo para encantar. Falava francês muito bem. Lia alemão e inglês sem dificuldades. Italiano e espanhol também. Tinha cultura geral. Era um verdadeiro erudito. Era professor de música e outras artes.
Assim, apesar do seu recato, tinha tudo para ser um danadinho. E foi. Mário, teve às escondidas, platonicamente ou não, teve inúmer(o)as amantes, ainda que passageir(o)as, “don(o)as de todas as classes sociais e de todas as matizes de pele”.

O RIO DO RISO E DO GUIZO

Rubens Borba de Moraes divide a vida de Mário de Andrade em duas partes:
“A primeira passou em São Paulo, firmemente ancorado no seio da família, na sua casa, cercado dos livros, quadros, os objetos de que gostava e entre amigos íntimos. Era extremamente apegado a tudo isso e nesse ambiente é que se sentia realizado e feliz. Salvo umas viagens pelo norte do Brasil e Minas, Mário nunca viveu fora de casa, longe de seu ambiente. De repente a derrocada do Departamento de Cultura, provocada pelo prefeito Prestes Maia, deixou-o no ar. recomeçar sua carreira de professor do Conservatório, há tanto abandonada, não era mais possível. Mário passou por uma crise terrível de desilusão, de desânimo e de nojo. Seus amigos do Rio, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade e o ministro Capanema, insistiram para que fosse para o Rio. Ofereceram-lhe diversos cargos. Mário hesitou. Discutimos muito o assunto em casa de Paulo Duarte. Acabou indo. Alugou um apartamento no Catete, procurou recomeçar a vida, a restabelecer o equilíbrio de suas finanças.
O que sofreu nesses primeiros tempos de ambientação não sei se escreveu nos seus caderninhos. Ela leu algumas das cartas que me mandou nessa época transparece seu desespero. Não me esquecerei uma visita que lhe fiz no Rio. Cheguei no seu apartamento quase ao meio dia com a intenção de irmos almoçar em qualquer lugar e conversamos à vontade. Toquei a campainha diversas vezes antes que me viesse abrir, de pijama, com os olhos empapuçados, a fala pastosa. Desculpou-se, estava dormindo. Sentado na cama disse-me que sentia um vazio, não se ambientava, não conseguia fazer sua vida, trabalhar direito. Tudo lhe parecia inútil e fútil. Não conseguia equilibrar-se de novo.
- Sabe, dei para beber. Tomo bebedeiras! Caí na farra... Mas basta de dizer besteiras! Me fale de São Paulo, conte com vai tudo.
Falei e contei as novidades. Fomos almoçar e conversamos longa e intimamente. Voltei no dia seguinte para São Paulo, desolado. Tinha a impressão de ter visto uma amigo afogar-se muito longe no mar e, eu, na praia, sem poder fazer nada!
Mário, nesta segunda fase de sua vida no Rio de Janeiro, caiu numa roda de rapazolas literatos e boêmios e fez o que não fizera em moço: farras. Nos intervalos conseguia, assim mesmo, trabalhar, dar aulas na universidade do Distrito Federal, escrever artigos e redefinir projetos para o ministro Capanema. Mas, na sua idade, não tinha mais saúde para aguentar uma vida boêmia. Ficou doente. Vivia doente. Quando voltou para São Paulo, estava com a saúde seriamente abalada.
Vi pouco meu amigo nessa época. Eu também fora obrigado a mudar-me para o Rio. Mário já tinha voltado para a rua Lopes Chaves. Vinha raramente a São paulo. Numa dessas viagens rápidas encontrei-o na rua Libero Badaró. Estava magro, esverdeado, acabado. Queixou-se da saúde longamente. Quando o deixei percebi claramente que Mário estava passando por um processo de auto-destruição. Esse processo vinha de longe. Vinha do tempo do Rio. Estava agravado. Deixara-se invadir pelo grande nojo da vida. Nada mais encontrava como motivo para viver. Tinha ido até o fundo e só encontrara o vazio. Suas moléstias indefinidas eram psicossomáticas: resultado dessa falta de vontade de viver. Não tinha ânimo para reagir, deixou-se morrer”.
Este lado do Mário, que pouca gente sabe e que poca gente comenta, ganha agora um capítulo inteirinho do livro Tantos Anos (Siciliano), de Raquel de Queiroz. A autora de O Quinze fala do homossexualismo reprimido e sufocado desse que foi um dos maiores nomes do movimento modernista brasileiro.
“Tenho a impressão que a vida pessoal de Mário de Andrade era muito vazia. Talvez porque ele não ousasse assumir o seu sufocado homossexualismo. Tinha umas irmãs solteironas, com quem vivia. E assim, a todo jovem que o procurava, ele correspondia amigavelmente”.
Raquel atribui a compulsão do Mário em escrever cartas por cima de cartas justamente ao homossexualismo reprimido.
“Ele mantinha amizades a distância para compensar a frustação em sua vida pessoal”.
Pelo que lemos acima, quem estiver disposto a pesquisar o amor em Mário de Andrade encontrará muitas maçãs pelo meio do caminho. Isso porque, a vida pessoal do Mário é uma mar de enigma a todos a dizer: Decifra-me ou Defloro-te?.
Quem se habilita?

NOTAS:

O Turista Aprendiz (Diário de Viagem). Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. Sp. Duas Cidades, 1976.

 Na Pancada do Ganzá (- página 57. Prefácio de Mário de Andrade).

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